Quais os riscos que uma posição de liderança traz para quem a ocupa. E o que o RH pode fazer nesse caso.
Não é preciso ser fã de filmes de ficção científica para saber que ocupar uma posição de liderança oferece alguns riscos. Do estresse inerente à função, em que se exige maiores resultados com menores recursos, à solidão da tomada de decisão, que pode levar o líder a ser tachado de impopular. A relação de mazelas não é pequena.
Há quem até faça uma lista em ordem alfabética como Eduardo Cupaiolo, consultor e diretor da PeopleSide Human and Organizational Development. Ele começa, por exemplo, com "ameaças" e termina com "zombaria", passando por "isolamento" e "retaliação". "Isso sem contar, e de forma não-figurativa, o 'envenenamento por chumbo' e outras formas nada gentis com que os verdadeiros líderes são recompensados por sua disposição de alterar o status quo", comenta. "A lista de exemplos é muito longa, mas apenas para exemplificar, lembremos dos momentos finais de Luther King, Gandhi e Sérgio Vieira de Melo. Por mais nobres que tenham sido em suas missões, não foram apenas aplausos o que receberam", diz Cupaiolo. Ou seja, por mais que tenham sido admirados tais líderes incomodaram outras pessoas.
Num momento em que se fala muito na preocupação por parte das empresas em formar ou identificar seus líderes do futuro, é possível que muitos dos que estão nas organizações, hoje, estejam se questionando: por que ninguém falou que é complicado exercer essa função? "Liderar, de verdade, nunca será fácil. E quem acha que é, desculpe-me, não está liderando. Liderar é tirar gente do conforto, é balançar o barco, é cortar as amarras do cais e das âncoras, é, como dizia o narrador de Jornadas da Estrelas, 'audaciosamente ir e levar os outros para onde nenhum homem jamais esteve'", lembra Cupaiolo.
Uma das possíveis respostas para a pergunta feita seja, talvez, a própria corrida das empresas nesse processo de garantir no agora a liderança do amanhã. O sócio da Alive Eco Hut, Eduardo De Maria, conta que, infelizmente, a promoção do líder muitas vezes está atrelada a um aumento de salário e a uma troca de cartão de visita, com um título melhor. "Como nossa sociedade é credencialista e gosta de títulos e de posses, o funcionário aceita essa promoção; ele não tem a capacidade de recusar a oferta, mesmo não estando preparado."
Como se não bastasse isso, a redução, na última década, dos níveis hierárquicos nas empresas fez com que muitos cargos de liderança média fossem abolidos. Isso aumenta a exigência sobre os remanescentes, como lembra a consultora Patrícia Molino, sócia responsável pela assessoria em gestão de RH da KPMG no Brasil. Ou seja, essa proximidade entre o líder e seus liderados, que pode ser boa, pode também ser um ponto de estresse, uma vez que existem as oportunidades de os demais desafiarem ou questionarem os líderes no dia-a-dia. E quem não tiver preparo... E a tendência é buscar mais e mais pessoas para esses cargos, graças ao descompasso entre qualificação e crescimento econômico no país. "A previsão atual é que já estão faltando e vão faltar ainda mais profissionais qualificados: engenheiros, profissionais de informática e líderes que façam a diferença realmente", acrescenta Patrícia.
Saber identificar esses líderes ganha, então, status de arte e técnica refinada. Trata-se de um processo que deve ser executado com todos os cuidados, caso contrário, o tiro sai pela culatra e quem sofre, além da pessoa, é a própria empresa. Barbara Demange, diretora-geral da DA People Development, explica que, geralmente, quando uma pessoa é identificada como de alto potencial pela organização, tende a se esforçar para atingir o nível desejado. Mas se esse funcionário for jogado aos leões que os líderes têm de matar todos os dias, ele pode ter suas competências e potencial "queimados" pela empresa. "É como jogá-lo na água sem que ele saiba nadar", ilustra Barbara.
Quem também reforça a necessidade de atenção no processo de identificação e formação de liderança é César Souza, presidente da Empreenda, palestrante, consultor e coordenador de programas de desenvolvimento de líderes em várias empresas. "Quando esse processo não é bem coordenado, quando é casuístico e improvisado, sempre se corre o risco de levantar a expectativa das pessoas que, se não realizada, pode frustrá-las", diz.
O resultado é óbvio: a empresa acaba perdendo a pessoa que queria reter. E esse é um risco que a liderança pode oferecer a alguém, como lembra Winston Pegler, presidente no país da Ray & Berndtson. "Criar expectativas sem o necessário respaldo factual é desgastante", diz ele.
Para que não existam problemas como esse, Souza aconselha que o processo seja monitorado por mentores de cada potencial identificado. Assim, esse mentor poderá ajudar cada líder potencial a estruturar seu programa de desenvolvimento com metas e prazos realistas e factíveis. As duas chaves para minimizar esse risco são, de acordo com Souza, entender que, em primeiro lugar, o papel de identificar futuros lideres é dos gestores, não do RH, cujo papel é apoiar essa identificação. A outra é saber que cada potencial tem um mentor, que não precisa ser o chefe nem da área da pessoa identificada.
Outra resposta possível à pergunta sobre as dificuldades ou riscos não comentados da liderança é que boa parte dos livros a respeito dá mais destaque ao lado bom da coisa. O consultor Luis Adonis Correia conta que existem muitos obstáculos que fazem parte da jornada do líder, levando-se em consideração o arquétipo do herói em seus momentos de provação. "Só que na grande maioria da literatura sobre liderança, muito adequada para lixo que, na dúvida, não devemos reciclar - nunca se sabe o que vem depois -, esses momentos de provação não são sequer mencionados. Há uma visão glamourizada da liderança porque, no mundo fashion das organizações, o líder é a celebridade", pontua o consultor.
Barbara, da DA: às vezes, o líder tem de tomar decisões que podem ser impopulares Decisões solitárias
Por ser o exemplo para outros, o líder precisa conviver com situações nas quais tem de reforçar os valores e princípios da empresa. "Em alguns momentos, ele precisará tomar decisões difíceis a respeito de pessoas importantes e representativas que causarão impactos negativos num primeiro momento, mas positivas para a perenidade dos valores e da empresa", diz Diego Martins, presidente da Acesso Digital.
Em momentos anteriores a essa impopularidade ou até ameaças por parte de outras pessoas (apenas para citar dois aspectos negativos decorrentes da liderança), há uma outra mazela, como lembra Patrícia, da KPMG. Trata-se, na opinião da própria consultora, da maior delas: a solidão. "Não ter com quem compartilhar suas angústias, receios e incertezas não é nada agradável, pois o grupo deve ser conduzido com confiança na direção do objetivo definido", acrescenta.
"As empresas precisam de pessoas que sejam capazes de trazer resultados por meio do comprometimento dos colaboradores. Obviamente, um bom líder tem de tomar decisões difíceis, muitas vezes como chicote na mão", diz Barbara. Esse tipo de atitude pode não agradar a muitos, gerando críticas muitas vezes entre os subordinados na surdina.
Ela conta que um líder precisa ter o lado transformacional (olhar o futuro, inovação, motivar as pessoas etc.) e também o lado transacional (entregar os projetos nos prazos, ser chefe etc.). "Não devemos esquecer que diferentes empresas e diferentes situações precisam de estilos de gerenciamento diferentes. A cultura da empresa tem um impacto grande sobre o estilo de gerenciamento."
Mas a lista de problemas não termina aí. Além da solidão, incompreensão por parte dos outros, e pressão, César Souza também acrescenta o estresse, a sobrecarga, a responsabilidade por resultados às vezes inatingíveis, o ego inflado, a arrogância, a onipotência, a síndrome de se achar insubstituível. "E também a falta de coragem de dizer 'não', a paralisia na hora de tomar decisões duras, a falta de coragem de mudar, a tendência a se acomodar."
Parte do RH
E como lidar com tudo isso e ainda ser produtivo e fazer com que os outros o sigam? Para Martins, da Acesso Digital, a resposta é simples: sinceridade, transparência e decisões pautadas preservando os valores, missão e visão da empresa são essenciais para a boa liderança. Seguir esses princípios e torná-los públicos na empresa amenizam as mazelas e dificuldades do cargo. "E se elas surgirem, paciência, equilíbrio e tempo farão os sintomas desaparecerem. Entretanto, elas não podem aparecer com freqüência sob pena de manter a rotina de inconveniência."
Em alguns casos, um bom trabalho de coaching pode ajudar, como sugere Patrícia. A explicação está no fato de esse processo permitir uma troca de experiências - que pode ajudar o coachee a se preparar melhor para os desafios do dia-a-dia.
E há quem acredite não existir fórmula pronta, como César Souza. "Acredito que o autoconhecimento de cada um e o conhecimento do negócio da empresa e da sua equipe é que determinarão a forma pela qual o líder lidará com essas e outras mazelas."
Seja como for, com ou sem fórmulas, o RH pode ajudar o líder a enfrentar essas mazelas. E muito, de acordo com alguns especialistas. "O papel principal do RH não é implantar processos, mas ser o grande provedor de iniciativas inovadoras", diz Cupaiolo. "Tais como a diminuição das barreiras hierárquicas, e a confiança que diminui as 43 assinaturas para reembolso de uma corrida de táxi de 10 reais, mas também uma cultura de respeito e honestidade que não admite recibos falsos de corridas de 10 reais", acrescenta, lembrando que isso é romper paradigmas - o que é exatamente liderar. "Assim, o RH deve não somente apoiar seus verdadeiros líderes, mas deve ser, ele mesmo, o líder de processos de transformação."
Outra tarefa que o RH pode executar, segundo Patrícia, da KPMG, é se aproximar dos líderes e apoiar, especialmente, aqueles que chegam ao cargo antes de ter maturidade e/ou experiência suficiente por meio de ferramentas de gestão de pessoas, explicando as diferenças entre gerações e suas motivações, propiciando oportunidades para desenvolvimento e troca de experiências.
E não basta apenas o RH estar colado à liderança. É preciso mais, como garante Souza, do Empreenda. "Ele [RH] precisa parar de achar que a solução reside nas técnicas e nas ferramentas", diz. Para ele, a solução para essas mazelas está nas posturas e atitudes. "O RH precisa estar onde os gestores estão, junto e ajudando, em vez de estar na sua sala, sempre em reuniões intermináveis, digerindo a 'ferramenta salvadora'", diz.
Nessa proximidade, a área de recursos humanos pode dar coaching aos líderes, mostrando-lhes possíveis aspectos a serem desenvolvidos, instrumentando-os nesse desenvolvimento e, por meio de uma carreira planejada, criar oportunidades para que eles exerçam todo seu potencial.
Mas a tarefa não é só do RH, como observa Luis Adonis Correia. "Já que liderança perpassa toda a organização, não entendo por que RH teria um destaque nesse processo. Finanças, marketing, comercial são exemplos de áreas também afetadas e que podem contribuir", diz. Embora ele acredite que liderança não seja tema de propriedade de RH, mas, como Correia mesmo se diz, "sabedor das disfunções que acometem muitas empresas", ele sugere, de imediato, duas ações que a área de recursos humanos deve empreender para ajudar nesse processo: "A primeira é o cancelamento de todas as palestras com técnicos e esportistas, a não ser que a empresa patrocine ou participe de eventos esportivos. E a segunda é a aplicação de multa no valor de 20 vezes o valor de capa dos livros de auto-ajuda encontrados no local de trabalho ou recomendados aos colegas."
Visconte, da Cicky Bloch Associados: fala de preparo e de experiência de alguns líderes Papel da organização
E o que a empresa pode fazer? Em termos gerais, Winston, da Ray, acredita que democratizar o conhecimento das estratégias e táticas empresariais de curto, médio e longo prazos, levando em conta a confidencialidade requerida, pode ajudar a minimizar o estresse sobre o líder.
Saindo do campo estratégico, a empresa pode entrar em outros campos - isto é, colocar seus líderes na quadra ou em aparelhos de musculação e esteiras. Esse tipo de apoio à atividade física foi o menos apontado por executivos em posição de liderança numa pesquisa do Center for Creative Leadership, feita há dois anos: apenas 10%?dos entrevistados afirmaram que suas companhias ofereciam algum tipo de suporte para a prática de exercício - um dos métodos mais citados para combater o estresse causado pela posição de liderança.
O estudo, inserido no projeto Ideas2action, também mostrou que 88% dos líderes afirmam que o trabalho é a fonte primária de estresse na vida deles e que exercer a liderança aumenta ainda mais o nível de estresse (e mais de dois terços dos pesquisados acreditam que o nível de estresse é maior hoje do que há cinco anos).
"Desculpe, mas acho essa postura dos executivos uma bobagem, um retrocesso ao paternalismo empresarial", adianta-se César Souza, para quem é preciso acabar com esse incentivo ao pensamento de que a empresa vai resolver o problema de todos. Ou seja, cada um tem de assumir as rédeas do seu destino. "Precisa fazer exercício? Acorde mais cedo e faça em casa ou na academia no trajeto do trabalho. Ou faça antes de dormir. Mas essa de que a empresa vai ser responsável por exercícios? É uma decisão pessoal e intransferível."
Souza é enfático ao dizer que a causa do estresse é a estrutura errada, um processo decisório equivocado, a falta de líderes inspiradores, a falta de perspectiva das pessoas, a burocracia das empresas. "Fazer exercício é bom do ponto de vista pessoal, mas do ponto de vista da organização seria apenas atacar o sintoma, em vez de atacar a causa: liderança ruim e estrutura e diretrizes improdutivas que frustram as pessoas e as estressam pela frustração", comenta. "As empresas precisam atacar as causas do estresse e não o sintoma com exercícios e salas de massagem que escondem a natureza da cultura e do clima disfuncional."
Patrícia da KPMG: um dos problemas da liderança é a solidão em momentos decisórios Uma coisa é certa: não existe uma solução genérica para um problema com o qual cada pessoa lida de forma totalmente distinta. "Existem várias formas de lidar com estresse e elas dependem de cada um. Para alguns, fazer exercício com seus colegas de trabalho pode ser ótimo; para outros, só aumenta a tensão. A válvula de alívio de cada um é diferente", diz Visconte.
Ele, no entanto, vê como algo muito positivo empresas oferecerem oportunidade de uma atividade física, pois, com certeza, isso ajuda na saúde, mas o consultor ainda crê que o respeito ao individuo é o melhor remédio. "Permitir que o líder tenha o seu tempo de descanso para que o utilize da forma que lhe convenha é a válvula de alívio que se adaptará a um maior número de pessoas. Que o líder use de forma discricionária as suas férias, horários de entrada e saída e finais de semana." Tudo para minimizar os riscos e problemas que tem de enfrentar.
"Liderar dói. E não pouco", frisa Cupaiolo. "Ainda que alguns aplaudam, e só isso, a maioria, na verdade, fica 'na moita' esperando 'no que isso vai dar' ou conspirando para que eles se arrebentem no poste. Basta lembrar que dos 12, só um apóstolo, João, o evangelista, assistiu à crucificação de Jesus", diz.
Revista Melhor Gestão de
Pessoas- edição nº 251.